O general e o cozinheiro
"Será uma morte lenta", assegurou o general, "faz parte do contrato", enquanto o cozinheiro deslisava sua faca pelo pescoço de Felipe, linhas verticais em torno de seu pomo. O suficiente para um fino traco vermelho sangue brotar.
"Não, não, por favor, você não entende, eu num posso morrer.. tenho muita coisa pra vê ainda". O general ouvia o garoto suplicar do canto da sala, longe o suficiente para não manchar sua farda, mas perto o suficiente para garantir que o contrato seria cumprido. Os termos eram claros, a morte viria, lentamente, das mãos de ambos.
"Olha o que eu fiz pra vocês? Bah, eu ando aqui em Cuzco faz um tempo já, fiz umas merdas, eu to sabendo, mas quem eh que não faz?". A faca continuava seu caminho pelo peito. Mamilos, barriga, umbigo, tudo já jorrava sangue. Mas o cozinheiro sabia que essa era só a parte "lenta" do contrato, não a morte.
"Porra, eh dinheiro que vocês querem? Não tem um puto na minha bolsa, mas deve ter alguma coca." "Folha de coca?", o general respondeu prontamente, e a faca do cozinheiro interrompeu sua jornada a dois dedos do umbigo de Felipe. "Não velho, porra, o pó, não deve ter muito, mas eh tudo de vocês". Os olhos do general voltaram para o mesmo vazio de antes, e o cozinheiro terminou seu trajeto. O garoto já era vermelho de cima a baixo, mas ainda não tinha gritado. Dor não estava no contrato. Para o próximo passo, o cozinheiro precisaria de outra faca. "Não, espera, eu entendi, eu sumo daqui, não, a boca, aaaaahrg". Felipe resistia com toda a forca que restava, mas cortar a língua de alguem para o cozinheiro era tao natural quanto fatiar cebolas.
"Preste atenção, Felipe. Você vai morrer. E lentamente. Dor não está no contrato, mas a sua língua era necessária". Mais um detalhe contratual do que puro sadismo, a língua dos jurados de morte tinha que ser removida para evitar argumentacão. Um pouco de dor também torna a próxima parte mais aceitável, da algo para o jurado pensar enquanto a morte não chega. "Nosso contrato foi firmado pela sua irmã, onze meses atrás, ainda no Brasil. Ela quer que você morra, e lentamente". O sangue jorrava pela boca do garoto, mas o cozinheiro providenciara que a cadeira estivesse levemente inclinada para frente, evitando um eventual sufocamento, e consequente quebra contratual.
A expressão nos olhos da pessoa que acabou de descobrir quem ordenou sua morte varia muito. Muitas riem, algumas choram descontroladamente, outras juram vingança - mesmo com a língua cortada. Na classificacao feita pelo general, Felipe decidira pelo descontentamento e profunda tristeza. Nos ultimos três meses que acompanhou Felipe, o garoto ligava frequentemente para Porto Alegre, para o mesmo numero que, meses antes, havia firmado seu contrato. De certo que reconhecer o nome de seu assassino deve causar sofrimento, mas o general gostava de deixar essas divagacoes filosóficas para o cozinheiro.
Já pálido, o garoto nao resistia mais. O chão já continha grande parte do seu sangue. Mas o cozinheiro sabia que aquela deveria ser uma morte lenta e, tal como as clássicas tentativas de suicido por corte dos pulsos, uma pessoa raramente morre por hemorragia se o corte não atinge uma artéria. E, é claro, a sobrevivencia de Felipe não era opcao, nem mesmo uma possibilidade. Sua morte era um fato, e o cozinheiro havia garantido isso com a quantidade e profundidade exata de cortes pelo seu corpo. Uma lenta, mas relativamente indolor, morte estava assegurada por hemorragia.
O general contudo ainda não havia feito sua parte. Retirou um pacote de pilulas brancas do bolso e caminhou lentamente em direcao a Felipe. Nao para deixar a cena mais tensa, mas para evitar que gotas de sangue respingassem em suas calcas. "Engula essas garoto, vai te ajudar", disse o general enquanto gentilmente forcava as aspirinas pela garganta de Felipe. A ausência de língua torna o processo de engolimento mais complicado, mas o sangue ajudou as aspirinas a descerem.
Sentados, o general e o cozinheiro permaneceram pelos próximos setenta e cinco minutos em silencio, observando o garoto, em hemorragia intensa, sangrar até a morte. A gravacao só então foi interrompida. Embora considerada uma quebra de privacidade pelo general, gravar a morte de um jurado havia sido uma forma muito mais limpa de provar o comprimento do contrato do que como nos velhos temos, quando uma cabeça na caixa era pratica comum do mercado. Morte às 12:07, Cuzco, Peru.