Ele havia decidido ser velado vivo. Não foi exatamente uma decisao facil, muito menos repentina. Havia pensado muito, confabulado, ponderado todos as consequencias, ao menos o maximo que sua limitada experiencia em velorios o havia conferido.
Não que não tivesse ido em muitos, e havia ido. Não se constroi 432 casas em mais de 40 anos como pedreiro sem ir em uma porrada de velorios, mesmo que o morto merecesse algumas.
A questao eh que raramente ficava muito perto do cadaver. Chegava como quem não quer nada, dava um “oops”, uma expressaozinha de tristeza para a familia, ou quem quer q estivesse ali, e ia para a “perifa” da igreja, como gosta de chamar. Nessa area, reunem-se os parentes de 2º grau, os companheiros de buteco, os vizinhos de menos de 20 anos que haviam não menos q 2 vezes sido ajudados pelo morto(menos q isso nem apareciam) e não mais que 10(mais que isso já eram da familia).
Na perifa sempre se divertia. Tomava um café, matava a saudade de algum compadre, trocava um lero sobre “as situação” e tudo mais que o protocolo de cenografia de um velorio exige.
Como havia se divertido tanto nos suburbios dos defuntos que velou em sua vida, resolveu que seu caixao ficaria na periferia do ambiente, perto do café e de onde deveria ficar Seu Antenor, o dono da padaria que lhe servira tao bem nos ultimos 15 anos, mas ainda não 20. Eh claro que essa decisao lhe fez ouvir a primeira pergunta inteligente da noite em que havia começado a explicar sua resolucao para sua familia. E não surpreendentemente ela veio de seu neto de 9 anos que, como ele já havia estipulado, deveria ficar com cara triste no inicio da festividade, ir brincar com os primos no meio da noite em alguma area mais afastada e dormir em algum banco por volta das 2:35 da manha. Sem organizacao, nada funcionaria, pensou.
“Mas vovo, se o senhor vai ficar na berada da igreja, todo mundo que tava no meio vai até lá, e a berada vai virar o novo meio!”. O garoto estava certo, aquele bando de gente chorando haveria de irrita-lo ao menos mais uma ultima vez, ateh mesmo em sua propria velacao. Valeria a pena morrer se nem ao menos no proprio velorio o cidadao tem o direito de estar do jeito que gosta?
Decidira então numerar as cadeiras na igreja. “O padre nunca vai aceitar”, retrucou a irmã beata, a qual ele sentia uma leve vontade de nomear como “tia velha”. Maldito sacristão, construira a igreja com as proprias mãos, e um bocado de cimento e lajes pre-moldadas, e agora essa ultima ofensa? Se havia um Deus, Ele não ia ter nenhum problema em ir busca-lo no coreto da cidade.
Estava decidido entao, o velorio estava marcado para o proximo dia 23, no coreto da praça da prefeitura, com poltronas já numeradas para todos os presentes, inclusive para o “velado” e seu caixão. As velas foram substituidas por um pisca-pisca de 500 lampadas, já que achava absurdo utilizar tal impressionante buginganga somente no natal. As flores seriam samambaias, seu terno seria a camisa da portuguesa e, provocando o padre, a cerimonia seria ministrada pela vencedora do concurso “GATA DA EEFM PADRE ANCHIETA”.
Infelizmente, teve um ataque do coracao na semifinal da competicao, mas o velorio foi bom. Passei lá, tomei um café, revi o Mãozinha e voltei pra casa.